Precisamos de Produtos Digitais que nos empoderam


Estamos aceitando utilidade no lugar de empoderamento — não é uma troca justa.

Por Jesse Weaver

O mundo digital, como o concebemos, está nos consumindo — e os produtos e serviços que usamos são como amigos carentes: cada vez mais desesperados pela nossa atenção. Não conseguimos evitar, estamos em um relacionamento de codependência. Os produtos nunca estão satisfeitos e nós sempre dispostos a dar um pouco mais. Eles precisam dos nossos dados, fotos, posts, amigos, carros e casas. Precisam de cada segundo da nossa atenção.

Decidimos abrir mão de todas essas coisas para os produtos digitais porque eles são muito úteis. Os designers de produto são experts em entregar essa utilidade, aperfeiçoando processos que nos ajudam a realizar nossas tarefas. Infelizmente, está ficando cada vez mais claro que essa utilidade, por si só, já não é suficiente.

Muitas vezes, a interação com esses produtos nos diminui, deprime e gera frustração. Queremos nos sentir empoderada(o)s pela tecnologia — e nesse processo esquecemos que utilidade não é igual a poder.

Empoderamento significa tornar-se cada vez mais confiante, especialmente ao controlar nossas próprias vidas e assegurar nossos direitos. Esse não é o paradigma atual da tecnologia. Ao contrário: produtos digitais demandam tanto de nós e se infiltram tão profundamente no nosso cotidiano, que minam nossa confiança e controle.

A rotina no uso de dados é coletada e usada sem qualquer espécie de compensação ou transparência e nosso foco é mutilado por notificações constantes.

Nossas escolhas são reduzidas por algoritmos que ditam o que vemos. Não podemos sequer deixar nossos aparelhos de lado, porque perdemos a habilidade de resistir a eles.

Deixamos isso acontecer porque confundimos a noção de utilidade com um sentimento de empoderamento. Garantimos a nós mesmos que estamos no comando quando fazemos um ótimo negócio em um apartamento, quando sabemos das últimas dos nossos amigos, quando descobrimos um grande artigo, ou quando alguém entrega nossas compras na porta de casa.

Esses são só alguns dos pequenos momentos de utilidade pura que aprendemos a confundir com ter poder sobre nossas próprias vidas.

Credit: grivina/iStock/Getty Images Plus

E estamos nesse rumo já faz um bom tempo. Por décadas, as empresas se sentiram no direito de se infiltrar cada vez mais em nossas vidas. Essa tendência — conduzida por uma combinação de proximidade e disponibilidade — foi atingindo um ápice na última década. Tudo que fazemos online agora é rastreável. Antes da internet, esse nível de depuração de dados era inconcebível. Nos primeiros anos da internet, as companhias começaram a usar os registros de atividade dos usuários para barganhar e atrair anunciantes e alavancar seus negócios.

Durante pouco tempo, ainda havia um grau de separação porque simplesmente não passávamos tanto tempo na frente dos computadores. Até que chegou o smartphone.

Os smartphones criaram uma proximidade até então inimaginável entre consumidores e empresas. Essa conexão onipresente elevou consideravelmente o tempo que passamos online. De repente, essas companhias passaram a ter acesso a nós a todo momento, em qualquer lugar. Some-se a isso a crescente montanha de dados e o fato de que desapareceu a separação entre as nossas vidas e as empresas que querem exercer influência sobre nós.

É uma relação insustentável. Pode parecer o futuro, mas não é. A maioria das propostas de valor das empresas de tecnologia busca orientar o design para a utilidade, esperando que os consumidores os absolvam de qualquer desvio de conduta cometido em nome dessa utilidade. Este modelo está falhando porque não está considerando a perspectiva mais ampla do que as pessoas querem da tecnologia que utilizam.

A utilidade em si não basta. Nós queremos empoderamento. Queremos ser pessoas melhores. Queremos uma tecnologia que aumente nossas capacidades e nosso senso de protagonismo sem ditar o ritmo das nossas vidas.


Essa é a missão da próxima onda de produtos digitais — e ela vai exigir uma guinada completa na forma como pensamos o design. Para começar, precisamos estar dispostos a romper com o modelo de “utilidade” ao qual estamos acostumados. Como sempre, quando uma empresa desenvolve uma estratégia de sucesso, todo mundo tende a seguir. Quando estabelecemos um conjunto de boas práticas baseado na captura e exploração, disseminamos esse conjunto com uma impressionante precisão por todas as indústrias.

As empresas entoam o mantra do user-centered design, mas os produtos que elas criam geralmente são centrados muito mais no que eles podem capitalizar do usuário do que no que eles podem entregar de valor.

Aqui vão algumas ideias sobre o que temos que repensar como designers de produtos digitais:

  1. Como o papel dos usuários é visto no ciclo de vida dos produtos. Se o valor de um produto é o pressuposto das atividades e recursos dos usuários, então esses mesmos usuários não são consumidores, são parceiros nos negócios.
  2. Coleta de dados, manipulação e transparência. Precisamos colocar o usuário — não a empresa — como proprietário dos dados.
  3. O drive pelo engajamento contínuo. Sequestrar a psicologia humana para manter as pessoas ligadas é uma prática predatória. É preciso estabelecer padrões éticos em relação à manipulação do comportamento das pessoas.
  4. Modelos de receita. Modelos de negócios que dependem de um certo nível de engajamento do usuário são insustentáveis.
  5. Como criadores de conteúdo são compensados. Uma plataforma não deveria lucrar sozinha sobre as criações de seus usuários.
  6. Algoritmos e inteligência artificial. Precisamos de padrões éticos quando manipulamos o que as pessoas veem.
  7. O papel dos nossos produtos nas vidas dos usuários. Os produtos não são o centro das atenções nas vidas das pessoas; eles são apenas uma pequena parte.

Evoluir nosso pensamento em cada uma dessas áreas vai ser um grande passo adiante, mas só isso não será suficiente. Também precisamos desconstruir nossa obsessão com o screen-based design. Mesmo que seja improvável que as telas desapareçam completamente, elas viraram uma muleta — a via de menor esforço. Se há um problema a ser resolvido, designers de produto pensam que tudo que precisa ser feito é criar um app.

Photo by Eric Cook on  Unsplash

Esse comportamento alimentou toda a indústria de bootcamps de UX design, criando designers de aplicativos em profusão. Aos poucos, fomos nos convencemos de que todos os problemas são resolvidos de uma só maneira, ou, como diz a expressão: para quem só enxerga prego, toda ferramenta é um martelo. Ficamos tão acostumados com isso, que agora todos os aplicativos parecem iguais.

Telas são fáceis.

Elas geram muitos dos problemas do design de produtos digitais que nós descrevemos acima. Exigem um processamento atencioso, o que significa que nossos cérebros têm estar totalmente focados para interagir com elas. É da natureza das telas demandar nossa atenção — o que estimula o acúmulo de grandes quantidades de dados — e colocar-se a serviço das métricas de negócios, como minutos de visualização, tempo de permanência, acessos de página e tempo de leitura. As telas nos convenceram de que o engajamento contínuo é a definição de sucesso.

Nunca quisemos ser aprisionados pela tecnologia. Não é o futuro que nos prometemos.

Photo by Samuel Zeller on  Unsplash

Enquanto continuarmos a desenvolver soluções que demandam toda nossa atenção, vai ser praticamente impossível quebrar o paradigma de “produto desempoderador”.

Frequentemente, nossa obsessão por displays evita que sequer consideremos as muitas outras possibilidades — criativas e poderosas — de utilizar as capacidades da web.

Alguns apontam a realidade aumentada como a próxima etapa. Enquanto a AR parece transformadora e faz muito barulho, é no fim das contas a mesma tela em um lugar diferente. É o próximo passo para ver quão perto as notificações chegam das nossas pupilas. Não é empoderador.

Produtos empoderadores melhoram nossa capacidade e nossa autonomia sem perturbar o ritmo das nossas vidas. O carro é um exemplo. É uma evolução gritante na forma como viajamos — e temos poder (considerando algumas regras básicas de segurança) de usá-los como acharmos melhor. Trabalhamos juntos. Ele nos obedece. Não nos desestrutura. Um carro está ali quando precisamos e é invisível quando não precisamos.

Este tem que ser o nosso novo mantra do design: está ali quando você precisa e invisível quando você não precisa. Seria muito melhor do que o que acreditamos hoje: está ali quando você precisa e constantemente implorando pra você voltar quando você não precisa.


Em seu livro Enchanted Objects, o empreendedor e designer de produtos David Rose, do MIT Media Lab propõe o conceito de “glanceable technology” (tecnologia de relance): produtos que entregam valor sem exigir atenção constante. O exemplo mais básico de Rose é um guarda-chuva conectado à internet, cujo cabo acende e fica azul quando vai chover para que você lembre de levar ele na bolsa. É um dispositivo comum que se torna mágico com uma inteligência básica de rede. É simples e poderoso.

Considere outro exemplo: uma carteira que fica mais difícil de abrir a cada vez que você chega mais perto do seu limite do cartão. Compare com a inundação de notificações para gastar seu dinheiro que aparecem na tela de bloqueio, de serviços como Mint. E que tal um relógio de cabeceira que muda de cor de acordo com a temperatura do dia, para que você decida o que vestir sem ter que abrir um aplicativo? Ou um relógio que monitore padrões de trânsito e vibre para que você saiba quando você precisa sair para chegar a tempo no seu compromisso. Uma bagagem com um puxador que acenda para te dizer que o seu voo atrasou?

Cada um desses produtos seria uma evolução na nossa habilidade de tomar decisões e tocar nossas vidas, sem ser disruptivo ou comandar nossas ações. Eles usariam o poder da internet para entregar uma facilidade ao mesmo tempo que nos ofereceriam a capacidade de utiliza-los como acharmos melhor.

Há tanta coisa além das telas. Algumas das soluções apresentadas acima podem ser pareadas com um app e, mesmo assim, elas nos distanciariam das telas como pontos de entrada primários da tecnologia e colocariam um buffer entre nós e aquele amigo carente que precisa cada vez mais do nosso tempo.

Esse é o futuro que deveríamos estar construindo. Não se trata apenas de objetos inteligentes. Se continuarmos por esse caminho que estamos hoje, eventualmente vamos enfiar A.I. em qualquer coisa que encontrarmos. A inteligência em si mesma não equivale a empoderamento — assim como utilidade também não. Empoderamento vem da execução.

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Se eu posso escrever para a minha geladeira em casa quando estou no mercado para saber se temos leite antes de comprar mais, eu ganho mais poder para gerir minha vida. Mas se a minha geladeira “smart” também rastreia meus hábitos alimentares, e envia esses dados para a Amazon mandar um spam para o meu telefone com uma oferta especial de bolacha recheada, então voltamos à estaca zero.

Nunca quisemos ser aprisionados pela tecnologia. Não é o futuro que nos prometemos.

Histórias do nosso passado não desenham um futuro em que todas as nossas cabeças estejam enfiadas em uma tela — a não ser as histórias de um futuro distópico.

Sempre quisemos que a tecnologia fosse como uma mágica, não como um fardo. Podemos construir o futuro que quisermos. A tecnologia não é algo que acontece com a gente; é algo que escolhemos criar. Quando desenharmos a próxima geração de produtos, espero que a gente escolha o empoderamento.


(publicado originalmente aqui, em inglês)